A arte de memorizar: a memória como um pedaço de identidade

Há gestos que parecem simples, mas que trazem um desafio acrescido. Memorizar uma música, uma sequência de palavras ou um trajeto é um exercício invisível que o cérebro executa com uma naturalidade que disfarça a sua força.

A memória é, afinal, o arquivo daquilo que somos: o que recordamos e orienta as nossas decisões.

Entre a música, o desporto e a rotina, o ato de memorizar sempre foi um reflexo de disciplina e curiosidade. Um músico improvisa porque tem o ouvido treinado. Um locutor de rádio sabe o alinhamento sem o precisar ler. Um atleta repete movimentos até o corpo os reconhecer antes da mente.

Em todos os casos, há um ponto em comum: a memória transforma-se em instinto, e o instinto nasce do treino, da repetição e da concentração.

Treinar a mente como se treina o corpo

Num tempo em que quase tudo está a um clique de distância, lembrar-se de algo sem recorrer ao ecrã tornou-se quase uma forma de resistência.

Mas memorizar não é apenas um exercício técnico, é melhorar o foco e a atenção. Tal como acontece com atores que procuram memorizar os seus textos, sendo que muitas vezes é em grande volume; ou com profissionais de poker que sabem que memorizar as mãos e combinações do poker é importante, uma vez que cada uma tem um valor de jogo diferente (ao todo são 13); o treino da memória exige concentração, repetição e um certo desafio.

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A memória é um conjunto de conceitos: quanto mais explicada, mais profunda esta é, com diferentes ramificações e explicações psicológicas.

A memória não vive sozinha: é alimentada por emoção, contexto, curiosidade e até de ligações químicas no cérebro. E, quanto mais é exercitada, mais desperta se torna para captar detalhes que antes passavam despercebidos.

Da tradição oral à memória digital

Durante séculos, o conhecimento transmitia-se pelas palavras faladas. Poetas, contadores de histórias e cantores populares mantinham viva a memória coletiva apenas pela repetição. Decorar não era apenas recordar, era preservar.

Hoje, num mundo de informação, o desafio é o oposto: recordar o que realmente importa. A abundância de dados e fake news dispersa a atenção, mas também reforça a importância de exercitar a mente para reter a informação que nos chega.

É esse treino que mantém viva a capacidade de pensar com clareza e organizar ideias. Mesmo entre milhares de estímulos e distrações diárias, é preciso testar a memória para alimentar o cérebro.

A memória como identidade

Por outro lado, a forma como memorizamos diz muito sobre quem somos. Uns recordam rostos com facilidade, outros decoram números, outros ainda guardam sensações. É essa diversidade que transforma a memória num espelho individual. No fundo, memorizar é mais do que um ato de retenção, é uma escolha. É como uma fotografia da realidade, mas mental.

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Entre o que se esquece e o que se guarda, constrói-se uma biografia pessoal feita de fragmentos, sons e palavras que o tempo não apaga.

Guardar é, também, compreender e talvez seja por isso que a memória é o verdadeiro alicerce da identidade.

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A arte de memorizar talvez seja, hoje, um dos gestos mais humanos que restam. Num mundo que privilegia o imediato, lembrar tornou-se um ato de atenção e de cuidado.

Exercitar a memória é, no fundo, reafirmar a vontade de continuar presente, de reter, compreender e sentir. Porque aquilo que a mente guarda é o que verdadeiramente nos pertence.

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